segunda-feira, 17 de novembro de 2014

VIRTUDE, FORTUNA E GLÓRIA:
AS ORIGENS DA OBRA DE MAQUIAVEL E O IMAGINÁRIO MEDIEVAL

ANTECEDENTES

É notável que a Idade Média, no senso comum (inclusive no meio acadêmico), é considerada como um “buraco” na história, um infeliz interstício onde a sociedade européia se submeteu à ignorância total. Com a queda do império romano e o fim do mundo antigo a civilização, o progresso intelectual e a arte teriam sido abandonados por mais de um milênio, dando lugar à barbárie, ao fanatismo religioso e à insanidade. Nesse sentido convencionou-se chamar a Idade Média de “Idade das Trevas”, período em que a sociedade européia teria se afastado da luz, e só voltaria ao caminho da civilização e esclarecimento com o advento do Renascimento.
Observando a história de uma forma crítica, veremos que essa visão é, de fato, absurda. A história é contínua e deve ser entendida deste modo. Por mais que houvesse um esforço dos homens do início da Idade Moderna de romper com os padrões e o modus vivendi medieval, seu imaginário estava, com efeito, impregnado de conceitos, imagens, padrões de comportamento e ideais desse período e isso não pode ser simplesmente ignorado. Considerar o Renascimento e a Idade Moderna como a continuação do desenvolvimento da civilização ocidental após a desintegração do mundo antigo é ignorar um período de mil anos que foi suficiente para cristalizar na sociedade européia um modo próprio de ver o mundo e as concepções do imaginário dessa época foram carregadas para a Idade Moderna com muito mais intensidade que as concepções da antiguidade. Intensas mudanças sociais, políticas, econômicas e culturais de fato ocorreram durante os séculos XV e XVI, mas essas mudanças, apesar de representarem uma ruptura com o momento histórico anterior, estavam embebidas de aspectos próprios da Idade Média. O objetivo desse artigo é tomar como objeto a obra de Nicolau Maquiavel, uma produção clássica do primeiro humanismo renascentista, e mostrar como os símbolos do imaginário medieval estão vivamente presentes em nela.
 A corrente realista da qual faz parte Maquiavel é uma resposta aos infortúnios desse período de transição assim como grande parte da produção renascentista. Após a chamada crise do século XIV, período em que a sociedade européia passou por um momento histórico de horrores, com a fome, a peste e a guerra presente em sua vida cotidiana, houve uma tentativa generalizada de recompor a Europa. Os séculos seguintes foram marcados por esse estado de espírito de renovação que motivaram um novo momento de produção estética e intelectual e o humanismo está intimamente relacionado com este contexto. A Igreja Católica se modificava nesse período ao mesmo tempo em que perdia influência de forma relativa e sua censura sobre todas as formas de conhecimento se tornou mais tênue, permitindo o florescimento de novas idéias. O que devemos nos atentar é que as matrizes teóricas e simbólicas dessas novas idéias já estavam presentes no cenário intelectual e no imaginário europeu durante grande parte da baixa Idade Média. A obra de Maquiavel “O Príncipe” está repleta de conceitos largamente difundidos no pensamento medieval. Virtuo, fortuna e glória criam a trilogia de virtudes que um soberano deveria ter segundo Maquiavel. Ao conceituar os três com seus respectivos significados iremos voltar aos séculos anteriores para recuperar a importância desses conceitos e seus respectivos símbolos. Por conta da leitura sem preparo é que Maquiavel foi mal interpretado, por isso, abaixo faço a defesa deste gênio e coloco em destaque o verdadeiro significado de seu pensamento e as origens dos signos por ele utilizados.
 O primeiro humanismo do renascimento está intrinsecamente arraigado nas questões colocadas por Maquiavel em sua obra mais famosa “O Príncipe” explicitando como um arcabouço alegórico a problemática do período. As obras do primeiro humanismo estão ligadas com a transição e o declínio da Idade Média em relação à consolidação do Antigo Regime. Nesse período, a literatura antecipa o Estado que ainda não está consolidado, e sim passando por uma tempestade nebulosa na política e por convulsões populares devido às transformações nos costumes cotidianos. Este conturbado período observa a Igreja perdendo parcialmente a sua influência, o esfacelamento das famílias feudais devido a desentendimentos principescos e a incerteza como valor fundamental sobre o que virá. A literatura do período, visionariamente, antecipa o regime que viria a ter vigência nos séculos seguintes e normatizam, através da criação de manuais, a superação da problemática do esfacelamento político e social do momento histórico que passava a Europa.
É nesse cenário que se imbrica a obra de Maquiavel, que inovadoramente inaugura a corrente realista fazendo uma constatação empírica do real. Uma obra fundamentalmente pragmática que se distancia dos tipos de narrativas feitas até o momento que buscavam o tipo de sociedade ideal. Ele explicita de que forma seria possível e funcional a reconquista de poder em sua pátria que naquele momento havia sido tomada por Carlos VIII, rei da França, que dominava a Itália na época.  Ele analisa de forma clara e soluciona o problema da tomada francesa, propondo aos Médicis, a família mais influente de Florença, que retomem seu lugar de direito. Em sua obra, Maquiavel não defende nenhuma forma de governo; ele apenas esquematiza a forma de governo necessária para a retomada de poder naquele momento. Muito mal interpretado Maquiavel foi entendido em nossa contemporaneidade como um mau caráter, defensor do absolutismo e “maquiavélico”, palavra que provém de seu nome com uma conotação de crueldade e falta de ética. Porém, se mantermos nossas mentes atentas ao que realmente está escrito em sua obra, ficará clara a visão de que a ética não foi abandonada como se pensava, mas, ao contrário, está deslocada do começo da obra para o final, pois os meios não estão encerrados em si. A glória do soberano nada mais é que a glória do Estado que leva a sociedade à felicidade. Tal felicidade a que se refere Maquiavel é aquela encontrada em Epicuro, felicidade como prazer estável e ausência de dor na qual se encerra no equilíbrio dos desejos por meio da razão.
Segundo Maquiavel o soberano deveria ter como prática condutas virtuosas, essas que o levariam à gloria, pois é através da virtuo que o príncipe faz a roda da fortuna girar a seu favor, pois o destino gira sobre os impulsos da roda, essa que pode ser dominada se o soberano for virtuoso.
Não se pode entender essa lógica se nos ativermos ao sentido atual dessas palavras. É preciso entender, a partir do olhar medieval e dos conceitos humanistas, qual o sentido real desses signos no contexto da Baixa Idade Média. A realidade medieval conheceu um mundo de contrastes onde as diferenciações eram muito claras. Existiam dois pólos: bem e mal, luz e trevas, divino e profano. Um mundo maniqueísta, dotado da capacidade de afastar a compreensão humana do real e focá-la no simbólico. A Igreja Católica pregava um mundo regido pela vontade de Deus e pelo livre arbítrio dos homens que, de acordo com suas atitudes, seriam salvos ou não quando chegasse o julgamento final. Nesse sentido, não havia espaço para o acaso, a sorte ou mesmo para o destino. O fato é que esses conceitos estavam impregnados no imaginário da sociedade européia medieval na forma de símbolos como a roda da fortuna. Da mesma forma, a morte era vista como o ceifador, a soberania como uma mulher ou rainha como na tradição celta entre outros muitos símbolos. Os arcanos do tarô estão intimamente ligados a este simbolismo.
 A obra de Maquiavel está, em seu íntimo, embebida do sentido desse simbolismo antigo que ao longo da Idade Média era cultivado paralelamente à doutrina católica. Primeiramente, para compreendermos a aplicação desses símbolos, precisamos entender a estrutura social medieval. A sociedade européia medieval era uma sociedade de estamentos de muito pouca ou quase nenhuma mobilidade e esta estrutura perdurou por toda a Idade Moderna. Clero, nobreza e povo tinham funções distintas nos desígnios de Deus e por este motivo tinham modos de vida radicalmente distintos. Ora, para os pobres camponeses não havia possibilidades de ascender. Na chamada Baixa Idade Média, uma série de fatores resultou em um período de crise generalizada durante o século XIV que pode, de certa forma, ser entendida como a causadora das alterações que a sociedade européia passaria nos séculos seguintes. É relevante lembrar que o declínio do Estado vigente tomou forma de divertimento como podemos observar nos relatos do período. As histórias medievais dos séculos XIV e XV têm como características o descaso popular com os conflitos das casas nobres. Encontram-se histórias que vão do romance cavalheiresco as cantigas de escárnio. Os medievos assistiam cenas que criavam uma atmosfera de hostilidade e dissolução da unidade política já que esta era baseada em alianças entre as dinastias nobres e reais dos reinos europeus. As tensões e conflitos entre essas famílias colocaram em cheque o equilíbrio de poder na Europa da Baixa Idade Média. Não são raros os episódios relatados do período em que a inconstância dos membros da alta nobreza titular colocava em perigo toda uma estrutura social.

No fim dos séculos XIV e no principio do século XV a cena política dos reinos da Europa estava tão cheia de ferozes e trágicos conflitos que os povos não podiam deixar de ver tudo o que dizia a respeito à realeza como uma sucessão de acontecimentos românticos e sanguinários: na Inglaterra o rei Ricardo II, destronado e em seguida secretamente assassinado, enquanto quase ao mesmo tempo, o mais alto monarca da Cristandade, seu cunhado Venceslau, rei dos romenos, foi deposto pelos eleitos; em França um rei louco e pouco depois uma terrível luta de partidos, abertamente iniciada com o terrível assassínio de Luis de Orleães, em 1407, e indefinidamente prolongada pela retaliação de 1419, quando João sem Medo foi assasinado em Montereau. (Huizinga, Johan. “O Declínio da Idade Média”, pp17 a 18).

Esses trágicos incidentes e infortúnios gerariam a vingança dos príncipes e grão-duques que, para o povo, aparentavam como rivalidades motivadas por caprichos e paixões pessoais. Nota-se a inconstância da sorte das casas, essa sorte vista como fortuna. O conceito simbólico da palavra consiste na sorte que pode ser guiada conforme as atitudes de um soberano e não uma sorte que ao bel prazer do destino.
Na obra de Maquaivel existe um capitulo que fala da importância da fortuna para o príncipe “ Quantum fortuna in rebus humanis, possit et quomodo illi sit occurrendum”. Ele coloca a importância do livre arbítrio nas decisões e do uso da virtuo como parâmetro ordenador da fortuna. Um homem que usasse bem a virtuo cria uma estabilidade na sua sorte.

Dito isso, concluo que, sendo a sorte (fortuna) inconstante e os homens obstinados em suas formas de agir, estes serão felizes pelo tempo em que com ela convergirem e desditosos quando dela divergirem. E considero o seguinte: que mais vale ser impetuoso que circunspecto, pois que a fortuna é mulher, e, para mantê-la submissa é preciso batê-la e maltrata-la. (Maquiavel, Nicolau “O Príncipe”, pp. 123 a 124)

A fortuna foi uma palavra muito significativa para o período e está intimamente relacionada à iconografia do Tarô de Marselha. A Roda da Fortuna, arcano maior do Tarô de Marselha e símbolo presente no imaginário europeu medievo, tem a mesma representação no simbolismo das cartas e na leitura de Maquiavel.
Uma questão que não pode deixar de ser discutida é o fato de a iconografia simbólica do tarô ser considerada pagã, o que estaria em direta oposição à supremacia ideológica mantida pela Igreja durante a Idade Média. A solução deste paradoxo se mostra clara se considerarmos a Europa medieval, mais do que uma sociedade profundamente católica, como uma sociedade profundamente mística. A riqueza de símbolos, lendas, sagas, mitos e imagens que povoavam a Europa no período estavam bastante vivos no imaginário inclusive na doutrina católica. As lendas do ciclo arturiano são um claro exemplo disso. Os cavaleiros da Távola Redonda, em sua demanda pelo Santo Graal, cálice que Cristo teria partilhado com seus apóstolos na Santa Ceia, são a representação ideal do cavaleiro medieval cristão. Por outro lado, a saga mítica dos cavaleiros de Artur está carregada de elementos pagãos e oriundos da mitologia celta. O Graal, a espada Excalibur, a ilha de Avalon, o mago Merlim; todos estes ícones conviviam no imaginário europeu juntamente com a doutrina da Igreja Católica.



OS SÍMBOLOS E A IDEOLOGIA NA IDADE MÉDIA

Durante a Idade Média, os mitos foram de uma forma geral, apropriados pela Igreja Católica. A cristianização do mito de Artur e seus cavaleiros está inserida nesse contexto. Isto se explica no sentido de validar perante a sociedade a ordem estamentária através da uma ideologia que não pode ser ignorada, pois está ligada ao sagrado. Podemos considerar que na linguagem iconográfica está a representação desses mitos e sua cosmologia, mas, muito além disso, a representação social da condição humana no momento. Nesse sentido, os Arcanos do Tarô nos refrescam a mente em relação ao pensamento medieval acerca de alguns conceitos. É importante ressaltar que no fim da Idade Média o pensamento religioso tendia para a representação de imagens, que solidificavam e davam consistência ao pensamento medieval. O desejo de consagrar todas as ações da vida por meio de imagens tomava conta de todas as esferas sociais, desde os seguidores do cristianismo até os místicos.
Henry Suson, um místico da época, empenhou-se em tentar consagrar os aspectos da vida cotidiana, figurando o amor profano entre outras questões em uma homenagem a sua noiva “Eterna Sabedoria” além de satirizar a conduta cristã. O sentido de sagrado e profano foi se desgastando ao longo do tempo, pois a sacralidade se misturava com o cotidiano fazendo com que as dimensões do sagrado se tornassem demasiadamente comuns. Essa constante relação dos símbolos com a vida cotidiana vai, aos poucos, ganhando autonomia fora do manto da Igreja. Mesmo com a oposição da Igreja ao uso excessivo das imagens, ela não conseguia arrancar das garras populares a necessidade de uma forma concreta, palpável às emoções e pensamentos. A solução da Igreja era apropriar-se de todos esses símbolos como parte de sua doutrina e perseguir aqueles que se cristalizavam fora dela. O fato é que a imagem se tornara parte do pensamento medieval para a compreensão do mundo.

A imagem de uma árvore ou uma genealogia bastavam para representar qualquer relação de origem e causa. Uma arbor de origine júris et legum, por exemplo, classificava todo o direito sob a forma de uma arvore com numerosos ramos. Devido aos seus métodos primitivos o pensamento evolucionista na Idade Média estava destinado a ficar esquemático, arbitrário e estéril.” (Huizinga, Johan. “O Declínio da Idade Média, pp. 211)

A explicação para todas as coisas se tornava universal no simbólico, usando a imagem como entendimento de significado e finalidade como fica evidenciado no exemplo acima sobre da árvore. A associação simbólica ao evento que fundamenta as práticas cotidianas pressupõe uma confusão entre essência e materialidade das coisas. Tais abstrações, sentimentos e condutas relacionam imagem e essência sob a forma de conexão social e mística[1]. A universalidade de certas imagens e cores criava uma ligação com o mundo inconsciente e suas referências. Um exemplo seria o uso da cor vermelha nas imagens, cor que significava sangue, sacrifício, vida e amor. Em conjunto com uma figura, essa cor poderia expressar um desses significados.
Segundo Huizinga existia uma forte relação entre o simbolismo e o realismo[2] escolástico, que deve ser considerado mais como uma atitude mental do que uma opinião filosófica inerente à civilização da Baixa Idade Média que pautaria todas as expressões do pensamento e imaginação. O neoplatonismo teria influenciado muito expressivamente a teologia medieval, mas não foi a única causa do movimento realista na Baixa Idade Média, pois tudo que recebe um nome se torna um entidade e toma uma forma que se projeta no mais alto plano divino, o Céu, esta forma na maioria dos casos tem ligações com a forma humana.
A partir do simbolismo é que surge o uso de alegorias no período, onde a partir da atribuição da existência de uma idéia real a personifica. Alegoria e simbolismo estão em relação de interdependência. O simbolismo como uma relação de profundidade espiritual perante a idéia e a alegoria como relação superficial dando materialidade e idéia. A projeção da idéia estaria classificada como alegoria, que a partir da lógica criada pelo simbolismo pode ser compreendida com um conjunto harmônico entre símbolos e idéias. Mircea Eliade discute a importância do mito para o homem através do pensamento de que devemos pensar que, independente da natureza do mito ele é o exemplo fundamental para que se siga determinada ação dentro de uma situação, pois ele já a vivenciou “in illo tempore”. Essa constituição é materializada no conjunto simbólico através do mito, numa relação que parte do real para o mundo metafísico. O simbolismo acabava por divinizar e mistificar a idéia criando uma relação de existência anterior.
A idéia de símbolo traduz a importância do acontecimento sendo ele nesse mundo épico narrado pelos antigos ou parte do mundo linear dos contemporâneos, não importa qual momento a idéia de símbolos exprime “um sistema de sinais”.  
Segundo Levi Strauss “o pensamento mítico se manifesta na História”, para a fabricação de História, “explicar nós mesmo” buscamos procedência nos mitos, então o “fato histórico participa da natureza do mito”. Os medievos nada mais faziam do que essa relação do real com o mítico como agentes da sua historia, não conscientes. E a baixa Idade Média manteve essa tradição tão viva que os homens do século XIV tendiam a simbolizar de forma espontânea vários tipos de  pensamento, atribuindo a eles logo formas figurativas, como no caso do Tarô, que carrega até hoje o simbolismo medieval em sua iconografia. O simbolismo funcionava como “um espelho que se opunha ao do próprio mundo dos fenômenos”[3].
A partir do entendimento do patamar de importância dos símbolos para os homens da Baixa Idade Média, podemos explorar o uso das alegorias medievais nos conceitos utilizados por Maquiavel como qualificações de um bom soberano, para que ele possa deter o poder do Estado em suas mãos. As três dimensões exploradas por Maquiavel das virtudes de um príncipe podem ser entendidas no simbolismo do tarô.
A cosmologia de fortuna nesse contexto está intimamente ligada à sorte. Aquele que pode ser boa ou ruim. O Arcano X, a Roda da Fortuna, no Tarô de Marselha tem como elementos iconográficos, uma roda que simboliza o jogo, o girar para que lado – cima, baixo. A roda está dividida entre bem e mal, ou fortuna e infortúnios, pois há dois gênios colocados em cada metade da roda, o gênio da maldade Tífon e o gênio da bondade Ermanubi. Como ainda está em questão o maniqueísmo por isso consideramos maldade e bondade, porém esses gênios quando pensados em fortuna para Maquiavel estão relacionados a infortúnio e fortuna.
Não se deixa de falar na Roda sem lembrar a carta que a antecipa, o Eremita, o Arcano IX, que se entende na numerologia como o número que representa o fim, a condição de todas as experiências, sábio, o eremita adquire inteligência pela luz da experiência e da prudência. O Eremita é sábio e prudente. Para saber girar a Roda é necessário que se tenha a sabedoria do Eremita, entendida por Maquiavel como virtuo, sendo essa um conjunto de atribuições que deveriam compor a capacidade de um príncipe para que ele possa governar com eficiência e alcançar a glória. A virtuo de Maquiavel não se encerra apenas na iconografia do Eremita, mas também pode ser encontrada , o exame de consciência, a balança da justiça que se equilibra conforme a capacidade de saber girar a roda.
E por fim a glória que consiste na totalidade do sucesso, está simbolizada no tarô pelos Arcanos XI, o Mundo, onde o êxtase e a plenitude são finalmente alcançados.
É claro que a iconografia não antecede seus conceitos e é a partir do significado atribuído no inconsciente coletivo que podemos fazer analogia dessas imagens com o texto de Maquiavel, como discutido acima. À medida que a Igreja Católica foi perdendo o controle da ideologia simbólica medieval, foi possível o florescimento de uma obra com o teor do “Príncipe” de Maquiavel. Surge um entendimento de que o soberano é dono de sua própria sorte, devendo regê-la com honra e sabedoria a caminho da glória, sem abandonar a fé. Aqui, o homem, no caso o soberano, não é mais um simples instrumento dos desígnios de Deus, mas um indivíduo capaz de colocar o destino a seu favor e a favor do povo que governa. Nesse sentido, o Príncipe se encaixa brilhantemente no contexto do primeiro humanismo.




O CAMINHO DA DOR

Segundo Huizinga um sentimento geral de calamidade ameaçava todos, e algumas crônicas do momento que foram encontradas fala de uma interminável serie de processos, crimes e perseguições. As crônicas de época deixam mais vestígios de infortúnio do que de felicidade, e durante o século XV estava em questão à inconstância da vida e o sofrimento atribuído a ela. Todos os modos e forma vigentes estavam em declínio dando espaço à busca de novas estruturas que desembocariam enfim no renascimento. 
A Idade Média sempre vivera a sombra da Antiguidade, e o que seria o Renascimento senão a perpetuação dessa sombra como algo palpável, além da assimilação do pensamento escolástico cheio de simbolismo conduzido pela Idade Média, à concepção dualista da vida e o espírito da cavalaria.  Na mesma esfera de declínio do pensamento medieval é que surge o humanismo, nascidos da mesma mãe na deixam de ser irmãos.
Em qualquer época se encontra documentos de infortúnio porém, o fato é que na baixa Idade Média esses documentos se tornam constantes, esse desprezo pelo otimismo é encontrado também em obras humanistas. Em um trecho extraído de uma carta de Erasmo de Hotterdan , o mesmo deixa clara a sua falta de feição pela vida, onde relata “já ter vivido o suficiente e vê num futuro próximo a esperada idade de ouro” [4].
A palavra melancolia fora bem difundida no século XIV carregando a idéia reflexão, fantasia e tristeza, onde que dominava o momento e a poesia de Dechamps colocava o mundo em condições de loucura “o mundo é um velho caído na demência. Começou por ser inocente, depois foi sensato muito tempo, e justo, virtuoso e forte”[5] esse pessimismo característico da época não esta ligado a religião mas sim a crise geral que passava a Europa, fome, peste, disputas entre as casas dinásticas e a constância das incertezas e inseguranças suplantadas nos corações do populacho medieval.
Nasce a partir desse cenário um gênio chamado Maquiavel que agraciou a humanidade com sua obra “O Príncipe”, expondo o imaginário medieval e suas representações simbólicas.





BIBLIOGRAFIA

ELIADE, Mircea: “Mitos, Sonhos e Mistérios” Edt.70, 1ºedição. 2000

ELIAS, Norbert:O Processo Civilizador:Uma História dos Costumes, volume 1” Editora J.Z.Edt, Rio de Janeiro 1994.

DUBY, Georges: “A Sociedade Cavaleiresca” Editora Martins Fontes, São Paulo 1989.

HUIZINGA, Johan: “O Declínio da Idade Média” Editora Ulisseia,. São Paulo

MAQUIAVEL, Nicolau: “O Príncipe” Edt. L&PM, Rio Grande do Sul 1998.

STRAUSS, Levi: “Raça e Historia”. Edt. Presença, Lisboa, 1ºedição, 2000.







[1] Segundo Huizinga, isto pode parecer uma pobre função mental, característica do pensamento primitivo na percepção entre moderna, mas na Idade Média sem esse sentido, o simbolismo está ligado à concepção de mundo realista no fim da baixa Idade Média.
[2] Mentalidade superidealizada que leva a materialização do pensamento através de um conjunto simbólico.
[3] Huizinga usa essa definição para falar dos perigos do simbolismo.
[4] Excerto retirado de Huizinga, p 32.
[5] Idem , p 36
GUERRA EM NOME DA CULTURA:

O PARADIGMA DE HUNTINGTON E A DESINTEGRAÇÃO DA IUGOSLÁVIA


Este artigo tem a intenção de colocar em questão o novo paradigma de guerra contido na teoria de Samuel P. Huntington, diretor de Estudos Estratégicos de Harvard, e relacioná-lo ao conflito étnico e político ocorrido durante a desintegração da antiga Iuguslávia. Será colocada em pauta a situação daqueles que sofreram e ainda sofrem com os conflitos inter étnico nos Balcãs e possivelmente, em certo nível, explicar suas razões. Para isso se faz necessário traçarmos um panorama do contexto político e econômico vigente na Europa Oriental no cenário pós Guerra Fria para contextualizar o momento histórico do evento a ser discutido, mas primeiramente devemos apresentar em breves linhas a idéia central da teoria de Huntington. 
Em 1993, Huntington publicou na revista Foreing Affairs um ensaio que inaugurou um novo paradigma explicativo para as guerras no mundo pós Guerra Fria. O artigo se chamava “Choque de Civilizações” [1]. Os paradigmas que buscavam explicar a origem dos conflitos até então eram, para ele, insuficientes para explicar os conflitos pós Guerra Fria. Huntington defende que os conflitos contemporâneos teriam sua origem primariamente calcada em diferenças culturais de nações e grupos de civilizações diferentes e não em divergências ideológicas ou disputas econômicas. Para ele, o paradigma apregoado por vários autores que colocavam a origem de conflitos nesses termos era, com efeito, insuficiente. Para entendermos a teoria de Huntington, é muito importante a compreensão de seu conceito de civilização. Ele define o termo como a identidade cultural mais ampla de um povo. A identificação cultural oriunda da globalização teria deixado poucas civilizações que poderiam ser classificadas como tal no mundo contemporâneo. A ocidental, a islâmica, a hindu, a eslava ortodoxa, a latino-americana, a japonesa, a confuciana e a africana são as colocadas pelo autor. Tais civilizações teriam padrões culturais de certa forma diversos o suficiente para motivar conflitos em muito maior grau que a ideologia ou a economia. “Por cultura se morre” – afirma o autor. Nesse sentido, o choque de civilizações seria uma abordagem que melhor explicaria os conflitos dos nossos tempos como, por exemplo, o conflito da desintegração da Iuguslávia.
           
O Leste Europeu tragado pelo Socialismo


Após a Segunda Guerra Mundial, o Leste Europeu foi tragado pelo socialismo e os arredores da Europa Oriental estavam sendo coagidos por sua forma de governo. A implantação do socialismo nesses países se deu pela força e seguia o modelo soviético, o chamado socialismo real que se opunha ao socialismo de Marx (socialismo ideal). Sua práxis estava fundamentada em cinco aspectos: O primeiro é a unidade partidária. Era permitido um só partido para todos os países que foram absorvidos pela URSS, partido este que se confundia com o Estado. O segundo aspecto era o econômico. A economia desses países agregados era centralizada nas mãos do Estado. O terceiro estava ligado à industrialização, esta que teve um expressivo crescimento, mas que criava um abismo entre as indústrias de base em contraposição com as de bens de consumo, causando falhas e escassez no abastecimento da população de bens de consumo. O quarto aspecto está relacionado ao fato de a agricultura ter sido relegada a segundo plano, pois a prioridade do Estado era, com efeito, a industrialização. Além disso, a coletivização das terras resultou na queda da produção agrícola. E, por fim, o último aspecto que foi, de fato, o mais relevante para a ocorrência da desintegração do Leste Europeu. O isolamento desses países do resto do continente. Enquanto a população se mantinha na miséria para fomentar o sistema socialista implantado nesses países, sistema que não admitia a existência de classes sociais para criar a ilusão de que existia apenas a classe trabalhadora, os burocratas do Estado podiam, em condições especiais, adquirir produtos de consumo não acessíveis à população com muita facilidade. Além disso, foi criado o Comecom, uma organização criada pela URSS para isolar a economia do Leste Europeu do resto do continente, criando interdependência entre os Estados agregados a ela. Além disso, havia também uma polícia que segundo o Pacto de Varsóvia poderia intervir nos países membros em caso de ameaça à integridade territorial desses paises. Essa polícia era na prática usada como repressora da população.
A resposta a essa subordinação do Leste Europeu, foi a desintegração da URSS, que aos poucos teve sua imagem política desgastada graças à forma de governo repressora e abusiva da URSS. Com o fim do advento da Guerra Fria e a queda do Muro de Berlim, os países subordinados entraram em colapso juntamente com seu dominador, e buscaram consolidar novas formas de governo. Ora, tais formas de governo já haviam sido delineadas no trajeto histórico da movimentação libertaria dentro desses países.
Num período de quarenta anos a URSS passou por três tentativas de desligamento da Europa Oriental. A Revolução Húngara em 1956, a Primavera de Praga na Tchecoslováquia em 1968 e a crise da Polônia que ocorreu de 1980 a 1981. O governo soviético conseguiu suprimir essas crises e a população pagou com milhares de mortos pelas tropas que foram acordadas como defensoras no Pacto de Varsóvia. A Cortina de Ferro, assim chamada por Winston Churchill, primeiro ministro da Inglaterra, estava em crise e não mais serviria ao decadente poderio russo. A onda de insatisfação a que fora levado o Leste Europeu contribuiu em grande parte para que a situação hegemônica da URSS se partisse em uma questão de tempo. Estava se diluindo por dentro o socialismo soviético. Na Iugoslávia, a crise do socialismo real em que estava mergulhado o Leste Europeu causaria uma guerra civil tão sangrenta e dada à xenofobia quanto a Segunda Guerra Mundial. 
A Iugoslávia, até 1991, era eminentemente composta por seis Repúblicas federadas: Sérvia, Croácia, Eslovênia, Macedônia, Montenegro e Bósnia-Herzegóvina além de mais duas regiões autônomas sob influencia da Sérvia, Voivodina e Kosovo. A Iuguslávia existia como nação desde o fim da Primeira Guerra Mundial, mas com o fim do socialismo, a estabilidade mantida entre as suas repúblicas não se sustentou e a tensão existente na região desembocou em uma sangrenta guerra civil entre sérvios e croatas.
A formação iugoslava trazia dentro de si a própria ruína, pois sua história sempre fora de antagonismos e rivalidades entre os povos que compunham seu território. Desde o século IX até a contemporaneidade existiu entre esses povos rivalidades étnicas e religiosas. De acordo com a teoria de Huntington, seria eminente um conflito na região após a Guerra Fria, justamente por viverem em um mesmo território povos de diferentes civilizações.

A Desintegração da Iuguslávia – Tragédia, metal forjado pelas diferenças étnicas

Após um período de estabilidade marcada pela liderança de Tito[2], que tentava colocar as diferenças étnicas em segundo plano unificando o Estado em prol do socialismo, uma tragédia viria a acontecer: a guerra civil sérvio-croata.
Seus antecedentes se explicam nas feridas que a Segunda Guerra Mundial criou nessa região, que se mantiveram abertas sangrando no seio da população sérvia durante todo governo de Tito, após a guerra. Os croatas praticaram, durante o período da guerra mundial, o extermínio sérvio em massa. Limpeza étnica, com direito a campo de concentração, como em Jasenovac, além da violência aplicada pelos croatas às famílias sérvias, que morriam a marretadas em trilhos de trem estendidos, agonizando, a espera de sua vez. A ocupação alemã durante a Segunda Guerra acirrou o ódio racial na região dos Balcãs, pois apoiava os croatas contra seus vizinhos. Possuíam uma milícia no modelo da SS. Alinhavam-se ao lado dos nazistas croatas, albaneses muçulmanos enquanto o restante da população fugia para as montanhas. Lá, esses perseguidos encontraram a forma de resistir à ameaça de extermínio. Organizam a resistência sérvia pelos seus monarquistas, os chetnis, sob a liderança do general Draza Mihailovic, o ex-ministro da defesa da Iuguslávia além do grupo de guerrilheiros comunistas sob o comando de Josef Broz, que ficou conhecido como Tito. Ao final da guerra, com a derrota dos nazistas e croatas, a resistência pode retomar seu lugar de direito. Aconselhava seus representantes a não colocar em pratica retaliações contra os croatas, pois era importante agora estabilizar os Balcãs.
A liga comunista comandada por Tito havia criado uma defesa forte nas montanhas e, em tempo integral, foi um grande obstáculo para as tropas de ocupação nazista. Após a queda de Hitler e a vitória da resistência, Tito foi colocado no governo da Iuguslávia.
Sob o comando de um único homem, a Iuguslávia passou tempos de relativa paz, pois as atitudes de Tito tornaram-no um líder carismático entre os povos eslavos do sul. A restauração da Republica Socialista Federada da Iuguslávia só fora possível graças às habilidades estratégicas de Tito que, enxergando o tamanho da ferida ainda aberta e a exaustão geral entre as repúblicas que compunham o Estado Iugoslavo, tomou como prática uma nova forma de aplicar o socialismo através de uma política integradora que pelo menos atenuava as diferenças etno-culturais entre os eslavos. Essas que estavam calcadas principalmente nas diferenças religiosas, a oposição de católicos, ortodoxos e muçulmanos. Como visionário, Tito percebeu que diminuindo a influência dos sérvios e croatas, ele diminuiria a chance dos antigos ódios da época da Segunda Guerra causarem conflitos e, nesse sentido, aumentou a representatividade dos outros grupos étnicos que compunham a Iuguslávia.
O rompimento com a URSS, em 1948, representou um grande feito. Tito era visto como um homem forte, que havia enfrentado os dois maiores tiranos do Ocidente, primeiro Hitler e agora Stalin, que se aproveitava da fragilidade do Leste Europeu para expandir sua política. O líder manteve a Iuguslávia coesa frente às pressões da Guerra
Fria e mesmo as diferenças étnicas estavam seladas por pelo menos um cisco histórico, pois o respeito que Tito havia conquistado entre os povos eslavos do sul era capaz de transcender o ódio entre eles. Segundo ele, a ameaça soviética era forte demais e a Iuguslávia teria que ser homogênea para poder proteger seus filhos. Os fatores econômicos também tinham força nessas circunstâncias, pois com a autonomia conquistada por Tito em relação a URSS, o país pode manter uma política externa independente ganhando o respeito internacional o que era de forte efeito na sua economia. Enquanto seus vizinhos enfrentaram a duras penas o comando repressor da URSS a Iuguslávia gozava de certa autonomia e organização. Em 1955, juntamente com o Egito e a Índia, a Iuguslávia lançou as bases da Organização dos não alinhados, países que não se encaixavam em apoiar a ideologia de nenhum dos blocos antagônicos (Capitalismo x Socialismo) que haviam se erguido no mundo do pós-guerra.
Quando a Iuguslávia parecia estar debruçada sobre a bandeira da estabilidade pronta para se tornar um gigante do Leste Europeu, os conflitos étnicos mais uma vez trouxeram conflitos na região. É realmente por cultura que se mata, e a Iuguslávia lançou mão de todo esse balanço positivo em nome de antigos ódios. Ficou claro que as diferenças não haviam sido superadas quando, na década de 70, um grupo nacionalista croata cometeu uma série de atentados no país. Definitivamente, para eles, não poderia haver convivência com os sérvios. Diante da ameaça de uma nova guerra civil, o general promoveu reformas nas estruturas de poder. Ele delegava a cada uma das repúblicas um grau maior de autonomia política e os presidentes de cada uma das repúblicas ocupariam alternadamente a liderança do grupo de países que formavam a Iuguslávia.
Em quatro de maio de 1980, Tito veio a falecer, o que rompeu o último elo de estabilidade no país. Como então manter a unidade iugoslava? A tentativa seria a de manter o a rotatividade no poder executivo que ele havia proposto, para assim manter o equilíbrio de poder e amainar as rivalidades.  Infelizmente, nenhum dos nomes indicados pelo parlamento tinha a estatura de poder e carisma que Tito gozava e logo todo o trabalho de Tito começou a desandar. À morte de Tito, se somou a queda do muro de Berlim. A decadência do regime socialista perante o cenário internacional fez com que uma onda de convulsões populares tomasse conta dos Balcãs. Pouco tempo após a morte de Tito, a Iuguslávia enfrentou uma grave crise econômica. O desemprego aumentou, eclodiram reivindicações populares e greves, a inflação passou a crescer e o aumento da divida externa passou a aumentar sistematicamente. O colapso generalizado do socialismo na Europa fez a crise adquirir dimensões absurdas o que motivou aquelas feridas que ainda sangravam pelos conflitos étnicos a se abriram de maneira irreversível se sobrepondo sobre todos os outros fatores. Assim eclodiu a guerra civil que a Iuguslávia viria a enfrentar.
As Repúblicas Federadas, frente a esse colapso no cenário Mundial, mostravam sua insatisfação de ter que conviver sob uma mesma liderança. No início de 1990, a LCI [3] abre as portas para o pluripartidarismo e perde sua grande influência política. Ainda em janeiro do mesmo ano, acontecem focos de revoltas na região autônoma de Kosovo. No mês seguinte, as LCI da Eslovênia, Macedônia e Croácia mudam de nome em prol do surgimento de partidos de caráter nacionalista. Em abril, a Eslovênia e a Croácia elegem governantes não comunistas. Em junho e julho, a Sérvia dissolveu o parlamento e Kosovo propunha transformar-se na sétima republica do país, que devido a sua proposta acabou sendo reanexada ao território Sérvio, perdendo sua autonomia conquistada com o governo de Tito. A Bósnia também caminhava frente a sua separação da Iuguslávia.
O ano seguinte também foi conturbado. A Eslovênia e a Croácia declaram sua separação da Iuguslávia com o apoio da Alemanha Ocidental. Essa declaração da Eslovênia fez com que em Belgrado, as tropas federais entrassem em choque com as forças locais. Quando a Croácia seguiu o caminho da Eslovênia, se deu por concretizado o nascimento de uma nova ordem nos Balcãs e estava claro que as diferenças étnicas voltariam a causar mortes. O conflito deslocou-se então para a região onde os sérvios constituíam maioria e com medo de passarem novamente pela situação de humilhação ocorrida durante a Segunda Guerra, tentaram obter o controle das regiões fronteiriças, auxiliados por tropas federais que eram praticamente constituídas por uma maioria de sérvios.
Em 1992, a Bósnia, por meio de um plebiscito, declara sua separação da Iuguslávia e a população sérvia que vivia na Bósnia reagiu da mesma forma que seus irmãos alocados na Croácia, mas, na Bósnia, a situação foi bem pior, pois a diversidade étnica era maior e incluía além de sérvios e croatas, muçulmanos. A partir daí, os sérvios começaram a se posicionar de maneira estratégica e a praticar a purificação étnica eliminando aqueles que não eram sérvios.
A ONU tentava manter uma política de ajuda humanitária às regiões devastadas pelos sérvios e a OTAN, em 1995, interveio na Bósnia com pesados bombardeios partindo de aviões norte-americanos em solidariedade aos croatas e muçulmanos ali presentes. Nesse momento, os sérvios, liderados por Milosovic, arrasaram os países envolvidos e, em 1993, passaram a dominar 70% do território Bósnio. A Bósnia só conseguira resolver essa crise com a ajuda da OTAN que determinou um massacre contra os sérvios que ali lutavam. Em 2001, os albaneses tornaram-se praticamente donos de Kosovo com a ajuda da OTAN, que, querendo expandir-se para o sul, atacaram a minoria sérvia ali presente e a Macedônia. A OTAN se opôs a essa ofensiva albanesa, mas isso não foi o suficiente para evitar que os guerrilheiros albaneses e as tropas macedônicas encontram-se em meio a sucessivos atentados e contra-ataques de ambas as partes.
O desfecho da Sérvia teria foi dos piores. Após 72 dias de ataques sucessivos efetuados pela OTAN, a Sérvia se viu obrigada a render-se e a vender seu estimado presidente como prisioneiro de guerra para ser julgado pelo Tribunal de Haia. Porém, até hoje a sombra desses conflitos está muito viva na região balcânica, que não deixou de ser uma bomba prestes a explodir por qualquer gota de água que faça transbordar o caldeirão étnico ali alocado.


O Paradigma de Huntington

Huntington estava certo ao dizer que o novo paradigma de guerra seria a cultura. O show de horrores que tomou conta dos Balcãs na década de 90 e se expande até hoje como uma bomba relógio pronta a explodir é, com efeito, fruto da diversidade étnica e cultural.
A nova ordem mundial multipolar que Huntington coloca em questão é formada por oito civilizações: a ocidental, a africana, a islâmica, a sínica, a hindu, a ortodoxa, a latino-americana e a japonesa, entendendo que civilização para ele é identidade cultural mais ampla de um povo. Um exemplo disso seria um francês e um italiano. São de culturas diferentes, mas são europeus e, num organismo maior do que esse, são ocidentais.
O que ocorre nos Balcãs é o chamado choque de civilizações, pois ali se encontram num mesmo território três linhas de civilização a Islâmica, Ocidental e a Ortodoxa. Huntington divide o mapa-múndi em áreas de cisão, onde se alinhariam as fronteiras de diferentes civilizações. É no território que se encontram as linhas de cisão que aconteceria o choque de civilizações e, a partir desse choque baseado na intolerância, a guerra. Para Huntington, não haveria mais guerras mundiais por disputa de mercado e hegemonia de estruturas políticas, mas sim por contas das diferenças culturais entre as civilizações e essas linhas divisoras seriam o foco dessas disputas.
O globo é dividido em oito modelos diferentes de civilização, todas elas propensas a desenvolver conflitos inter-étnicos em suas fronteiras. O que aconteceu na Iuguslávia foi o choque na zona de cisão, onde a luta se dá pelo controle do território e a soberania de uma determinada cultura. A Bósnia e Kosovo estão bem ao centro da linha de cisão e lá ocorreram os sangrentos combates entre as diferentes etnias balcânicas como vimos. Na Bósnia, a disputa se dá pelo choque de três civilizações, ocidentais croatas contra islâmicos bósnios e eslavos ortodoxos sérvios. Em Kosovo, o conflito se encerra entre islâmicos kosovares e eslavos ortodoxos sérvios. Huntington, ao escrever “O choque de civilizações”, analisa o contexto sobre esse olhar e de forma empírica, constata sua teoria.
Ele propõe como solução a intervenção do Estado núcleo, que diferentemente das grandes potências hegemônicas da Guerra Fria, nada mais seriam do que líderes dos demais Estados que constituem um bloco civilizacional. A Rússia como líder dos Estados eslavos ortodoxos, deveria intervir de maneira positiva na Sérvia para acalentar o conflito ali decorrente. Não seria da conta do Ocidente esse conflito pois a civilização ocidental não estava envolvida. Devido à intervenção equivocada da OTAN é que ainda hoje perdura a sombra de um novo conflito na região.
Para Huntington, a única maneira de a nova ordem mundial sobreviver é o alicerçamento em laços culturais comuns entre si. Os EUA, a ONU e OTAN deveriam parar de expandir sua política intervencionista em regiões que não sejam de sua alçada. Ele afirma que a civilização ocidental, para justificar sua gananciosa expansão, utiliza o pretexto de levar o mundo a uma civilização universal de igualdade e democracia. Seu produto não será nunca a igualdade, mas sim o confronto com outras sociedades para justificar e legitimar seu predomínio cultural.
Ao intervir nos Balcãs, foi isso o que os EUA e OTAN queriam mostrar para o mundo: sua capacidade de expansão cultural. Mas o fato é que nem toda cultura pode ser submetida, pois elas estão dentro de uma identidade cultural maior. Huntington propõe que os Estados núcleos, em uma atitude realista visando a paz, não interfiram em guerras que não estejam envolvidos a civilização que lideram, mesmo que seja em nome dos direitos humanos, justificativa bem considerável para a intervenção.
A Iuguslávia, agora já desintegrada, ainda mantém as diferenças étnicas em suas linhas de cisão. Para Huntington, tais diferenças só podem ser contidas pelos russos no que diz respeito aos sérvios e pelos islâmicos no que diz respeito aos bósnios.
A observação empírica dos conflitos armados que ocorrem na atualidade valida a teoria de Huntington pois o intervencionismo ocidental, encabeçado pelos EUA, em regiões dominadas por outras civilizações, só trouxe mais violência como aconteceu na Iuguslávia.


[1] Esse artigo daria em 1996 luz a um livro : Choque de civilizações
[2] Período que durou desde o final da Segunda Guerra Mundial até a morte de Tito em 1980.

[3] Liga Comunista Iugoslava, até então único partido existente na Iuguslávia desde a inclusão da política socialista. 

BIBLIOGRAFIA

OLIC, Nelson B. – “A Desintegração do Leste: URSS, Iuguslávia, Europa Oriental” São Paulo: Editora Moderna 1993.


SERVA, Leão –  “A Batalha de Sarajevo” Editora Página Aberta Ltda.1994.


VESENTINI, José W. – “Novas Geopolíticas: As Representações do século XXI” São Paulo: Editora Contexto 2003.

  Autoria do texto : Cintia Migliorini Lins - Bacharel em Ciências Sociais 


 A Infância como Categoria Antropológica REVELADORA: Identidades Infantis como Construções Sociais e Históricas




“Mas agora, que se achava envolto em velhas roupas de algodão, que se tinham tornado amareladas naquele serviço, estava etiquetado e catalogado, e caiu imediatamente na sua real situação – uma criança abandonada – o órfão de um asilo – o humilde, meio esfomeado escravo para ser esbofeteado e socado através do mundo, desprezado por todos, não amparado por ninguém.” (DICKENS, C. “Oliver Twist”)


Esse artigo se propõe a entender a criança a partir de um olhar antropológico, buscando demonstrar com clareza que infância nada mais é do que uma invenção social, moderna, que determina padrões de comportamento.
Estudar a infância tem sido um desafio, pois ainda hoje, há certa dificuldade em se reconhecer a criança como um objeto legítimo de estudo. Apesar de o conceito de infância ter adquirido dimensão social no século XIX, só muito recentemente que a infância passa a ser entendida como construção social. A infância e a juventude são invenções da modernidade, e só passam a ter importância no pós Revolução Industrial, com a ascensão do modelo patriarcal burguês. Foi a partir da este momento histórico, onde as crianças também faziam parte das cenas nas fábricas, que se passou a olhar a criança como agente social. É devido ao papel que a criança desenvolve no XIX que ela passa a ser percebida pelo Estado como valioso patrimônio para a nação. É com o surgimento das novas ciências no XIX que se tornou possível essa compreensão da infância, pois os estudos da sociedade abriram caminho para o estudo de identidades e indivíduos.

“A infância passa a ser “visível” quando o trabalho deixa de ser domiciliar e as famílias ao se deslocarem e dispersarem, não conseguem mais administrar o desenvolvimento do filho pequeno.” (LEITE, 2003)


A antropologia se firma como um ramo de conhecimento em fins do século XIX, como a ciência social responsável pelo estudo de outras sociedades e culturas. Ao longo do século, essa definição foi se tornando menos precisa, e hoje a antropologia tem como objeto a própria sociedade. Esse estudo, dedicado aos fenômenos sociais que são próximos, abriu caminho para um estudo voltado a criança. A partir da expansão da antropologia em relação às outras disciplinas das Ciências Humanas é que podemos  pensar em uma Antropologia da Criança. Com influência do enfoque psicanalítico no campo da etnologia, a antropologia pode se renovar e criar uma nova escola na antropologia cultural, onde o estudo da cultura e personalidade se tornou um instrumento valioso. É a partir da influência de Sigmund Freud e Carl Gustav Jung, ou seja, da psicanálise, que a antropologia desenvolve a Antropo-Psicologia. Portanto, a antropologia passa a entender a criança como agente social e a infância como categoria condicionada pelo meio em que a criança vive. A ênfase no estudo sobre a formação da personalidade do individuo possibilitou entender a criança como parte ativa na consolidação de seu lugar na sociedade. Se a sociedade é constantemente construída, ela só poderá sê-lo se não pelos indivíduos que a constituem. A infância e a juventude não são vividas do mesmo modo por todas as crianças e adolescentes de cada canto do planeta.  Cada uma se relaciona ao seu meio cultural de maneira única, e não apenas com a passividade de um receptáculo de informações, mas também como agente produtor de cultura.

“A construção de uma relação respeitosa à alteridade da infância/adolescência passa pelo reconhecimento das crianças/adolescentes como sujeitos críticos e criativos, que criam seus jeitos próprios de interpretar e vivenciar as coisas do mundo, que produzem uma estética própria; são sujeitos que rompem com o estabelecido, mesmo que muitas vezes façam na clandestinidade”.(BATISTA, 2005)
           
            Segundo Batista, a criança deve ser compreendida como sujeito social ativo e atuante, produtor de cultura. A essa criança ativa se dá o nome de criança atuante, ou seja, aquela que tem um papel ativo na constituição das relações sociais em que se engaja, sendo, portanto, agente na incorporação de papéis e comportamentos sociais. Clarice Cohn, uma estudiosa da antropologia da criança fez um estudo sobre como as crianças interagem com o meio. Através da análise das relações sociais de meninos de rua da cidade de São Paulo, observando suas relações com a família e com outros atores da realidade urbana, demonstrou que elas têm um papel ativo na elaboração de uma imagem e uma identidade para si e para os outros que estão envolvidos em suas relações.

“Por essa pesquisa, vê-se que essas crianças engajam-se ativamente na constituição de laços afetivos e de relações sociais em todos os espaços pelos quais circulam. Isso inclui desde a constituição de “agrupamentos” de composição diversa e particular – mas obedecem a códigos e regras e estabelecem para si um local definido e definidor -, passando pela família e as instituições...” (COHN, 2003)

A antropologia da criança entende a cultura como um sistema simbólico onde a criança incorpora gradativamente esse sistema de símbolos culturais. As culturas infantis não estão alheias à cultura societal. Muito pelo contrário, sua base está nas relações sociais mais amplas por elas observadas e significadas em suas produções.
           
“Elas elaboram sentido para o mundo e suas experiências compartilhando plenamente de uma cultura. Esses sentidos têm uma particularidade, e não se confundem e nem podem ser reduzidos àqueles elaborados pelos adultos: a criança tem autonomia cultural em relação ao adulto.”  (COHN, 2003)

            Por fim, devemos ressaltar que nas mais diversas sociedades, as crianças podem ser concebidas como mais ou menos atuantes, na elaboração dos conhecimentos de que se apropriam, dependendo do meio em que elas estão, e que a categoria infância não pode ser vivenciada e compreendida do mesmo modo por todas as crianças, pois esta etapa da vida  do individuo varia de sociedade para sociedade. Ora, uma criança polinésia jamais viverá como uma criança brasileira. Ocorre que mesmo com as diferenças marcadas por distintos modelos culturais e sociais em que essas crianças crescem, ainda há uma necessidade de se estabelecer políticas de igualdade e educação mais eficientes. Uma análise minuciosa da antropologia da criança, sempre observada e entendida em seu contexto, pode ter um valor propositivo, onde a criança passa a ser entendida e deve ser respeitada enquanto um sujeito com direitos, ativo e participativo.




BIBLIOGRAFIA


BARRIO, Angel Espina. Manual de Antropologia Cultural. Recife : Editora Massangana, 2007.

BATISTA, Rosa. Cotidiano da Educação Infantil: espaço acolhedor de emancipação da criança.  In: Anais do Congresso do Fórum de Educação infantil dos Municípios da AMREC. Educação Infantil: identidade em construção. Criciúma – SC, 2003, pp. 45-58.

COHN, Clarice. Antropologia da Criança. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005

FREITAS, Marcos C. História Social da Infância no Brasil. São Paulo : Cortez, 2003.


Texto de autoria de : Cintia Migliorini Lins - Bacharel em Ciências Sociais.


A EDUCAÇÃO COMO EXERCÍCIO DA LIBERDADE - RESENHA: A Pedagogia do Oprimido – Capitulo Um




A EDUCAÇÃO COMO EXERCÍCIO DA LIBERDADE

‘’Quem inaugura a negação dos homens não são os que tiveram a sua humanidade negada, mas os que a negaram, negando também a sua.’’(Freire, 1968)

A sociedade contemporânea e o capitalismo nos proporcionaram um mundo pautado no utilitarismo e na opressão dos indivíduos. O produzir sem precedentes levou o homem ao fenômeno da desumanização. A violação dos homens implica na perda de consciência do individuo como ser livre e crítico. Tendo como resultado a constante alienação, que só é possível por ordem de um processo social onde a injustiça e a opressão permearam as relações humanas. Enganam-se os oprimidos quando pensam que a liberdade depende de se espelharem nos opressores, como possível caminho para libertar-se, tornam-se algoz de outros indivíduos criando uma distorção nas suas relações sociais. Paulo Freire aborda essas questões de maneira critica em seu livro  Pedagogia do Oprimido. Levando–nos a reflexão de como o sujeito é roubado de si tornando-se objeto de um sistema de relações superficiais e alienatórias.
Paulo Freire escreveu o livro Pedagogia do Oprimido durante seu exílio, no Chile, em 1968. Sua obra se tornou extremamente significativa na área da pedagogia e, é considerada a obra mais completa e importante de Paulo Freire. Traduzida em mais de 20 idiomas, tornou-se referência para o entendimento da prática de uma pedagogia libertadora e progressista. Sua obra tem como foco a verdade paradoxal das relações de violência no campo da reprodução do modelo vigente como prática educacional.
“Os que inauguram o terror não são os débeis, que a ele são submetidos, mas os violentos que, com seu poder, criam a situação concreta em que se geram os “demitidos da vida”, os esfarrapados do mundo.” (Freire, 1968)

A desalienação é como um doloroso parto, pois o homem que renasce para a realidade tal qual como ela é, e deve superar as contradições que atuam nas relações opressores-oprimidos. O homem que se liberta é aquele que supera a dicotomia entre objetividade e subjetividade. Marx através da dialética hegeliana  trata das contradições do desenvolvimento econômico e tecnológico tendo como resultando a inviabilização da expressão de liberdade humana. 
A educação é o único meio de restaurar a humanidade nos indivíduos oprimidos, portanto não deve ser elaborada pelos seus algozes opressores. Pois dessa maneira a educação proporcionada, ao invés de libertadora, projetaria a própria opressão. De fato, aquele que deveria ser liberto se transformaria num possível predador como sombra do opressor, a espreita de se tornar um deles, “deixar de ser menos, para ser mais”.  Segundo Freire a prática desta educação que liberta implica em dois momentos distintos, o primeiro na práxis, aonde os indivíduos oprimidos vão desvelando o mundo do opressor e comprometem-se com uma práxis transformadora, agindo em prol da humanização. O segundo momento é o da verdadeira revolução, pois, uma vez transformada essa realidade de opressão pela práxis libertadora, a realidade deixa de ser a do oprimido e passa a ser a pedagogia dos homens em processo de libertação. Ou seja, o segundo momento liberta os homens dos mitos e códigos criados para a manutenção das relações de injustiça.
De qualquer forma, a práxis não deve ser desvelada como puro ativismo, mas deve ser praticada e projetada como autêntica. Ou seja, a práxis deve ser pautada na consciência oprimida, pois é através dela que se inaugura ação e reflexão como uma unidade, agindo de maneira conjunta para uma educação transformadora. Por sua vez, a educação libertadora reconhece a dependência emocional e de caráter destrutivo que gera as relações de opressão social. Dessa maneira, a educação libertadora preza a independência do individuo através da reflexão e da ação consciente.

“Não se pode realizar com os homens pela “metade”. E quando o tentamos, a sua deformação. Mas, deformados, já estando, enquanto oprimidos, não pode a ação de sua libertação usar o mesmo procedimento empregado para a sua deformação” (Freire, 1968)

É necessário que o oprimido se conscientize de sua classe, e haja uma liderança revolucionária capaz de lutar pela constituição de uma nova realidade. Não basta alterar a política, a mudança deve ser de cunho profundo envolvendo as bases, a educação e a cultura. A revolução não pode excluir seu caráter pedagógico, o de criar indivíduos críticos, capazes de se reconhecerem como sujeito e não como objeto.  Portanto a ação transformadora prevê uma inserção lúcida na realidade, onde o individuo se torna  agente de sua história. Criando possibilidades de uma vida mais digna e justa. Essa pautada nos valores reais de solidariedade e humanização. Uma vida que prospecte a liberdade para criar e construir. Paulo Freire faz ativas considerações sobre o caráter eminente pedagógico da revolução.
           

BIBLIOGRAFIA

FREIRE, Paulo : A Pedagogia do Oprimido – Capitulo Um. 36º edição. Edto. Paz e Terra. 1968



O problema da violência urbana nas sociedades capitalistas a partir dos referenciais marxistas em políticas sociais.


O problema da violência urbana nas sociedades capitalistas a partir dos referenciais marxistas em políticas sociais.

O paradigma da violência urbana está engendrado na relação e organização dos sujeitos sociais em torno de interesses particulares. O caráter propriamente  dito do capitalismo em manter as relações de desigualdades, sugere a formação de bolsões de pobreza e de miserabilidade em parte da população por ele assistida. Logo a violência urbana se torna meio de sobrevivência para as camadas excluídas da sociedade. Uma vez que, o desenvolvimento do capitalismo pauperiza as condições de sobrevivência dos indivíduos. À crise por que passa a “sociedade do trabalho” reafirma as potencialidades conflitivas pressupostas por Marx em seus referenciais teóricos, quando apenas uma minoria detém os meios de produção. Reflexo disso é a pobreza, a alienação e o esvaziamento do individuo de si mesmo, o qual fica exposto aos objetivos do sistema. A  apropriação da mais-valia leva os detentores do poder a obter lucros exorbitantes sobre o trabalhador que em muitos casos se restringe a apenas viver miseravelmente.  Esse contexto é capaz de criar graves problemas sociais dentre os quais a violência urbana, o fenômeno da exclusão e a resignificação do sujeito. Contudo, a sociedade atual programa tentativas de resoluções ao problema sem atacar verdadeiramente a causa.  As políticas sociais surgem como proposta de amenizar o avanço das forças produtivas no modo de produção capitalista.  Apresentam-se com  uma resposta direta às conseqüências da má distribuição de renda e da concentração dos meios de produção nas mãos de uma minoria detentora do poder.
Segundo Marx o modo de produção capitalista é capaz de excluir uma grande quantidade de pessoas, que se tornam indivíduos sem participação no mercado de trabalho. Portanto as políticas sociais representariam as driblagens do sistema sobre as reinvidicações da classe proletária. Elas dão forma as alternativas de não suprimento das necessidades básicas  acalmando as massas em doses homeopáticas. De certa forma, elas reproduzem a sociedade burguesa, onde são apresentadas aos proletários as questões mínimas de sobrevivência, reforçando a condição de exploração aos que estão engendrados a essa sociedade. A origem das políticas sociais está notadamente relacionada ao processo de desenvolvimento do capitalismo, sendo parte de um fenômeno construído historicamente.  Dessa forma elas representam os efeitos da má distribuição de parte dos lucros da produção, ao mesmo tempo em que refletem a luta continua do proletariado contra a burguesia. Elas Para Marx o máximo seria a superação da exploração do trabalho e da acumulação.

Neste sentido Marx aponta que o papel  que cumprem as políticas sociais não supera os mecanismos que restringem os interesses imediatos nas relações sociais e econômicas mantidos pelas relações de exploração. O capital, o Estado e o trabalho se tornaram os principais elementos do capitalismo e fazem usos estratégicos das políticas sociais na reprodução de um sistema de exploração da força do trabalho e do consumo. São elas as gêneses do desenvolvimento capitalista. Contudo podemos verificar a necessidade de políticas sociais pautadas na superação das relações atuais, onde sejam capazes de perpassar o caráter de mero projeto social.  Essas políticas devem notadamente apontar para a real causa dos problemas políticos e econômicos de maneira a construir de uma sociedade plena capaz de superar as relações de produção e exploração por meio do capital. Estas como políticas conscientes não obstantes de criar uma sociedade pautada nas relações entre indivíduos conscientes de  classe e na justa distribuição de renda. 

As Politicas Públicas no Estado Neoliberal


As Políticas Públicas no Estado neoliberal



Após a segunda guerra até a final da década de setenta a social democracia foi capaz de manter um capitalismo regulado conjunto com políticas assistenciais a população. Contudo, a próxima década traria de volta o modelo liberal, tornava-se cada vez mais complexo para o Estado a manutenção de um Estado interventor e assistencial. A questão das políticas públicas e sociais envolve sempre questões de cunho político e demandas organizadas por fatores socioeconômicos e culturais. Dessa forma, a implementação de políticas publicas e sociais  estão determinadas pela cronologia, ou seja, pelo seu tempo histórico. O fracasso do Welfarestate fez fazer valer aos Estados contemporâneos uma experiência diferenciada sobre a as demandas sociais, pois a socialdemocracia se valeu de um Estado interventor para alcançar as demandas públicas no contingente de bem-estar.
Vejamos de forma histórica o funcionamento das políticas públicas em correlação com as políticas econômicas de Estado. Para tanto é necessário partir da queda do laissez-faire e da ascensão do keynesianismo pela social democracia.
A apropriação dos ideais de Keynes pela socialdemocracia pode fazer valer a intervenção do Estado na economia e nas políticas sociais. A queda do laissez faire e a participação socialista no governo suscitaram políticas de bem estar social. A socialdemocracia adotou o “estado de bem-estar” definindo seu papel como modificador de a interação das forças de mercado, abandonando por completo o projeto de nacionalização. Em contrapartida adotaram um tripé estrutural que era o seguinte: 1.o Estado estava responsável pelas atividades não lucrativas para o setor privado, mas que erma de necessidade para o giro da economia com um todo. 2. Ficava  a cabo do governo regular as políticas de funcionamento do setor privado. 3. O estado se responsabilizava a tomar medidas capazes de propor o bem-estar-social aos seus cidadãos na luta em atenuar os efeitos distributivos do mercado.
A partir de 1973 estabeleceu-se no mundo uma profunda recessão combinada com baixas taxas de crescimento e altas taxas de inflação, o que fez com que os neoliberais ganhassem espaço. O poder excessivo dos sindicatos e suas reivindicações trabalhistas haviam afetado a acumulação capitalista, o que gerou uma grave crise inflacionária. O remédio para esse problema era o de adotar uma postura neoliberal, onde o Estado diminuía sua participação nas relações econômicas, através da privatização de estatais, redução da carga tributária sobre altos lucros e extinção de políticas de transferências de renda. O estado mediador passou a ser acusado pela crise do petróleo e a falência econômica que a década de setenta assistiu. A elite econômica questionava a atuação do Estado nas políticas sociais, pois não era de seu interesse. A fórmula neoliberal se tornava o remédio para sair da crise, o Estado deveria se tornar parco para gastos sociais e regulamentação econômica. Dessa forma, adentramos o século XX com a perspectiva neoliberal de um Estado alheio as demandas políticas e sociais.

Cada vez mais o Estado se ausentou das políticas públicas, transferindo essa responsabilidade para as ONGs que se proliferaram na década de noventa. O crescimento nas demandas de políticas sociais e a ausência do Estado deram espaço efetivo para a criação de inúmeras ONGs que tem como promessa auferir aos indivíduos a plenitude e dignidade social. A ineficiência do Estado e o vazio de poder no campo das políticas públicas geraram possibilidades de que as ONGs pudessem se alimentar da miséria. A responsabilidade social, veiculada como valor moderno ingeriu os problemas gerados pela exploração do capital,  assim, distensionando  os conflitos da luta de classes.  Fenômenos estes que são assistidos com o fim do estado de bem estar social e a ascensão do modelo neoliberal. O neoliberalismo, na verdade, apenas aperfeiçoou os mecanismos de controle das tensões sociais. As ONGs  e a responsabilidade social como valor moral a ser defendido são parte desses mecanismos de controle. Dessa forma, o Estado não pode se omitir da massa, pois  é fato o desgastes social  e os problemas gerados pela exploração do capital. O Estado neoliberal ao transferir sua responsabilidade pública  e social para outros, faz uso estratégico das políticas sociais na reprodução de um sistema de exploração.  Contudo, há a necessidade de que as políticas públicas e sociais continuem a valer para as suas demandas. O que deve ser explorado é a inserção do Estado nessas  políticas, que  devem notadamente apontar para a real causa dos problemas políticos e econômicos de maneira a construir de uma sociedade plena capaz de superar as relações de produção e exploração por meio do capital.